- segunda-feira, julho 11, 2005 -

Auto da Barca do Inferno II (texto livre)

(Só um aviso... Este texto não tem nada a ver com o género dos outros textos que é costume por aqui no Wolven Soul. Foi só mesmo para imortalizar estes dois achados que julgava perdidos por entre a desarrumação arrumada do meu quarto...)

(chega um homem com má aparência, a roupa aos farrapos, os olhos meio revirados, à Barca do Inferno.)
Traficante: Está aí alguém dentro desse barco em chamas?
Diabo: Ai, sejas bem vindo, meu caro vendedor de desejos! Tens algum pacotinho para mim?
Traficante: Só se pagares. Esta ervinha terrestre é da boa. No caminho até cá não vi nada que se parecesse com ela.
Diabo: Ofereço-te uma viagem em troca desse saquinho que tens escondido no sapato.
Traficante: Mas... Mas quem és tu? Não és aquele que nos leva a todos para um lugar onde nem o cheiro da doce erva faz efeito?
Diabo: Sou, sim. Por isso te peço para provar um pouco disso. Parece-me bom.
Traficante (atrapalhado): Mas... Eu não posso ir nesse barco, então. Sem o meu mundo, não irei. Sem os sonhos que tenho de dia, não vou. Quero ir a um sítio onde possa partilhar os prazeres da coca com os outros.
Diabo: Ainda esperas entrar naquela além?
Traficante: Talvez vá. Mas nesta não entro. Não sem garantias de que poderei voltar a sentir aquela pica quando a coca faz efeito.
Diabo: Experimenta. Mas olha que não há nada melhor do que um bom cruzeiro. E mais! Essa barca de pesca ao lado não te servirá, se o que pretendes é partilhar esse êxtase com os outros.
Traficante: Porquê?
Diabo: São poucos os que lá entram. E desses poucos, são todos puros. Nunca provaram nada disso.
Traficante: Não há problema. Também tenho pastilhas para os fracotes.

(dirige-se à barca do Anjo)
Traficante: Ó Anjo, minha doce heroína!
Anjo: Heroína?! Também tencionas contaminar os de cá?
Traficante: Contaminar? Eu venho espalhar a felicidade, os momentos de êxtase, os prazeres simples que se escondem numa seringa!
Anjo: Os teus prazeres, guarda-los para ti! Nesta barca, não entrarás!
Traficante (segredando ao ouvido do Anjo): As primeiras doses são por minha conta...
Anjo: Basta! Seu inconsciente! Não percebes que essa folia te consome?
Traficante: Claro que consome... Todas as minhas dificuldades... Todos os meus receios... Queres?
Anjo: Afasta-te de mim! Tentações do pecado, leva-as ao Diabo!
Traficante: Já as levei. Mas ele quer levar-me para um sitio onde nada faz efeito.
Anjo: Pobre criatura... E o que é isso? Apenas uma seringa?
Traficante: Tenho mais nos bolsos de trás e nos sapatos... Pó puro...
Anjo: Afasta-te! Pecador! Blasfémia! Filho do Diabo... tens mesmo a certeza que isso é bom? Sê discreto e esconde-te ali debaixo da rede.

(Texto mais estúpido de sempre.)

Auto da Barca do Inferno I (episódio do Fidalgo)

Voltando à mansão do Fidalgo com a pesada cadeira às costas, o Pajem não escondia um sorriso malicioso nos lábios. Cantarolava baixinho, não se importando com o peso que carregava. Outro pajem observava apático aquele cenário: nunca um pajem tinha rido com tanta vontade!
- De que rides vós? – perguntou, após o Pajem se ter acalmado.
O Pajem não respondeu. Pelo contrário, assentou bem a cadeira no chão e sentou-se. Ricanava, lembrando-se do que se tinha passado no cais.
- Porque tardastes tanto?
Pera onde fostes? – insistiu o pajem.
- Nosso fidalgo pera a ilha perdida remará!
Servir Satanás irá
Pera o mundo do fogo ardente.
- De que rides, que pensa tua mente
Se nosso Fidalgo tem tão triste fim?
- Sua mulher, de tristura não perece!
- Não zombais, ela não merece!
Nom t’entendo, de que rides,
Senão da tristura de nosso Fidalgo?
- De sua má sorte, com certeza!
Não acreditais também que a Senhora morre por ele, pois não?
Vos lembrais daquele cavaleiro que cá passou?
No seu ombro a Senhora chorou!
- Porque escarneceis tanto de nosso Fidalgo?
- Mui escarneceu ele de nós.
Por agora, remará, lembrando-se assim dos males que causou.
- Que cousas me contais!
- E vós não sabeis de tudo!
- Que mais encontrais para zombar?
- De nosso Fidalgo que foi na naviarra de Lúcifer embarcar!
- E sua cadeira, porque lá não ficou?
- O Arrais não a aceitou.
E nosso Fidalgo ainda queria
Algo que defendesse sua senhoria!
Julgava que por fidalgo de solar ser
Dos seus pecados o iriam absolver!
- E ainda ricanais?
- Desde que parti daquele cais!
Nosso Fidalgo cometeu tanta travessura
Que o seu lugar por aqueles lados perdura!
Inda ele a entrar se recusou
Mas para o batel infernal o Anjo o enviou!
Ad vitam aeternam* por lá ficará
A esta hora... no Inferno está.

*Do Latim: para a vida eterna, para todo o sempre.

(Nas minhas arrumações de quarto encontrei este texto e o outro... Os dois referentes ao Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente. Podem não estar lá muito bons, mas na altura – há um ano! – deu-me um gozo enorme escrever estes textos...)

- sexta-feira, julho 08, 2005 -

Abre os olhos. Sente o mundo. Sente cada pequeno barulho vindo da rua, aquele ruidinho incessante: carros a passar, cães a ladrar, elevadores a subir e a descer, chaves rodando numa fechadura. E para ti, com o mundo a bater-te na cabeça, cada ruido é uma dor aguda que te percorre a testa. Até mesmo o barulho da caneta. Tic-tac. O barulho do relógio: Tic-tac. Os barulhos e as dores dando sinal a cada minuto. Tic-tac. Sentas-te nas escadas do colégio, procuras um lugar tranquilo para ficar. Tentas esquecer o mundo, mas sabes que é inútil. Pior do que o ruido de todos os relógios de casa em unissono. Os risos das crianças lá fora.
E tu? Que fazes? Ficas sentada num degrau, esperando que a dor passe. Elas lá fora, a diversão. Tu, cá dentro, sozinha, a tua testa brincando contigo. Sádica, essa testa. Gosta de te ver sofrer. Sádica, a testa... Acompanha cada dor. Os teus ouvidos não colaboram contigo. Pedes-lhes para se taparem, para se quebrarem, para te deixarem viver um pouco num mundo de silêncio, e eles... fazem-te ouvir risos. Lá fora, apenas risos. Estarão a fazer troça de ti? Não sabes ao certo, mas sentes como se todos se tivessem aliado para dar cabo de ti. A dor, essa, nunca pára. E a tua testa, sádica, ri-se.
(Fiz este texto há um ano e tal... Estava num dia mesmo mau. Almocei, sai de casa e fui para o colégio... Subi as escadas, sentei-me, peguei num caderno e numa caneta, e saiu isto.)