- terça-feira, setembro 14, 2004 -

"Deixa-me..."


Tinha-a usado e partido sem deixar rasto.
Apenas a sua memória continuava presente para relembrar o acontecido. A cara escondida por detrás da boneca de trapos, ela deitava-lhe olhares amedrontados, certificando-se de que ele lhe estava a virar costas.
Que finalmente a deixara em sossego.
Não tinha feridas e no entanto, sangrava. Todo o seu espírito gritava por ajuda entre lágrimas de desespero. Lágrimas que já não escorriam, um rio seco de tanto fluir. A mágoa ficara. O cansaço também. O seu coração espezinhado largava a fúria lentamente, como uma esponja vertendo água a mais.
“Vai-te embora. Afasta-te de mim!”, gritava ela secretamente nos confins da sua alma, as palavras ressoando em todo o seu ser. “Não voltes...”
Considerando-se vencedor, lançou-lhe um sorriso trocista antes de partir. Viera e magoara-a. Partira e deixara o vazio.
Ela não desviava o olhar, uma presa ameaçada por uma fera que decidia se ia ou não continuar a caça. Continuar a tortura. Pôr fim à existência da sua presa. Um tigre de dentes e garras poderosos que poderia atacar a qualquer instante.
O seu sorriso sádico fitava-a de alto a baixo, percorrendo o corpo frágil e indefeso. Riu-se alto quando passou pelo sangue que escorria pelo pulso que ela tentava estancar no vestido branco. A pureza manchada. A boneca de trapos desfeita, a memória da sua inocência.
A porta estava aberta. “Sai, vai-te embora. Deixa-me em paz.”, murmurava ela sem cessar, encostando-se à parede, impedindo-se de cair. Impedindo-se de voltar a ceder à tentação.
Sim, porque houvera momentos bons. Cada sorriso, cada palavra, por mais fútil que fosse, dava-lhe esperanças, forças para persistir numa batalha que ela sabia estar perdida. Um simples cumprimento fazia-a subir ao céu, mas a razão veio ao de cima.
O amor que ela sentia continuava à porta.
À porta do seu coração. Sem saber se partir ou ficar.
Ela suplicou-lhe pela última vez que partisse. Pediu-lhe que se fosse embora e deixasse a porta fechada a sete chaves para que fosse poupada a um novo sofrimento. Para que não tivesse que amar outra vez. O seu sorriso. As suas palavras despreocupadas.
“Uma utopia”, pensou, deixando a ingenuidade de parte. Nunca poderia alcançar o que desejava, apenas palavras e gestos interesseiros.
- Deixa-me! – gritou ela, a voz rouca e fatigada.Já não possuia nada. Ele tinha-lhe sugado todo o tipo de sentimentos. Sentiu-se oca, vazia, sem forças. Cerrou os olhos, entregando-se à sua mercê.
Satisfeita, a sanguesuga pousou a mão na porta, e ouviu-se o ranger da mesma. A luz do quarto fugia através dela, a escuridão apoderando-se da jovem.
O ruido cessou. Ela ainda sentia a luz bater-lhe nos olhos. Abriu-os de novo. Ele já não estava, o amor tinha partido.
E a porta estava entreaberta.